Entrevista com Rafael Navarro-Valls
MADRI, terça-feira, 1º de março de 2011 (ZENIT.org) - A possibilidade de objetar por razões de consciência contra obrigações legais que se consideram injustas constitui uma das batalhas legais mais importantes dos últimos anos no Ocidente, em campos tão díspares como a medicina e a educação.
É o assunto desta entrevista com o jurista espanhol Rafael Navarro-Valls, catedrático de Direito e colaborador de ZENIT. Ele explica a natureza e os limites da objeção de consciência.
- Não é um contrassenso que, justo no século dos direitos humanos, tenha sido preciso desenvolver o direito à objeção de consciência?
Rafael Navarro-Valls: A elaboração jurídica de um direito humano é um processo longo e, às vezes, doloroso. Aconteceu com as liberdades de expressão e religiosa, com o direito à não-discriminação por questões raciais e, agora, está acontecendo com o direito à objeção de consciência. Cabem duas posições: entendê-lo como uma espécie de “delírio religioso”, uma simples exceção à norma legal, que seria bom restringir, ou, pelo contrário, entendê-lo como uma derivação evidente do direito fundamental à liberdade de consciência, um verdadeiro direito humano.
Nesta segunda perspectiva, que é a correta, o direito de objeção de consciência tem que perder a imagem de “ilegalidade mais ou menos consentida”. Só numa concepção totalizante do Estado a objeção de consciência pode ser vista com desconfiança, precisamente porque ocupa um lugar central, não lateral, no ordenamento jurídico, pela mesma razão e da mesma forma como é central a pessoa humana.
Os poderes públicos são obrigados a promover uma adaptação razoável aos deveres de consciência dos cidadãos sem prejudicar o interesse público superior. O Tribunal Supremo dos Estados Unidos expressou isto muito bem: “Se existe uma estrela fixa em nossa constelação constitucional, é que nenhuma autoridade, do patamar que seja, pode determinar o que é ortodoxo em política, religião ou em outras matérias opináveis, nem pode forçar os cidadãos a confessar, de palavra ou de fato, a sua fé nelas”.
- Existe o direito à objeção ao serviço militar, à objeção de consciência dos médicos etc. Pode haver objeção de consciência a tudo ou existe um limite?
Rafael Navarro-Valls: O Tribunal Europeu de Direitos Humanos entendeu (em 1982) que uma objeção de consciência, para ser digna de consideração, precisa que a convicção ou a crença que a motiva proceda “de um sistema de pensamento suficientemente estruturado, coerente e sincero”. A Câmara dos Lordes, na sentença do caso Williamson (2005), agrega que uma crença, religiosa ou não, para ser considerada como objeção de consciência válida, tem que ser “coerente com padrões elementares de dignidade humana”, e se referir a “problemas fundamentais” e não a “questões triviais”; precisa de um “certo grau de seriedade e importância”. Estas características existem mais facilmente em crenças de fundo religioso, já que implicam um sistema coerente de crenças. Talvez por isso a objeção de consciência caminhou, historicamente, em paralelo com a liberdade religiosa, constituindo uma das suas dimensões mais destacadas. Naturalmente, a liberdade de consciência não se esgota no âmbito das convicções religiosas. Existem outras de caráter filosófico, deontológico etc., que também alimentam as objeções de consciência.
Além deste critério, em matéria de limites da objeção de consciência, podemos mencionar algum critério adicional. Talvez o mais destacável seja o nível potencial de perigo social dos comportamentos. Em princípio, a pura atitude omissiva diante de uma norma que obriga a fazer alguma coisa (não abortar, não fazer parte de um júri, não assistir a certos tipos de aula etc.) representa uma cota de risco social menor do que as objeções que levam a uma atitude ativa diante da norma legal que proíbe um determinado comportamento. Um exemplo: o Tribunal Supremo dos Estados Unidos, no caso Reynolds, rejeitou a pretensão da Igreja Mórmon, baseada em razões de consciência, de que as leis penais sobre a poligamia não valessem para os fiéis cuja religião permitisse a poligamia. A prática da poligamia, conforme o tribunal, “contradiz a ordem pública ocidental que exige que o casamento seja monogâmico”.
Enfim, por mais elevada que seja a sensibilidade que um determinado Direito tenha para com o respeito à liberdade de consciência, é claro que, em alguns casos, não poderão conciliar-se por completo os bens jurídicos em conflito; ou seja, a norma jurídica não poderá ser adaptada, na sua totalidade, às exigências morais de consciência de todos os cidadãos. Nesse tipo de situação, o ideal é evitar respostas simplistas de caráter negativo. O poder político deve fazer um esforço de flexibilização para encontrar as soluções menos lesivas para a consciência do objetor.
- A objeção de consciência pressupõe uma consciência retamente formada? Pressupõe que a lei positiva pode ser injusta, o que equivale a reconhecer um fundamento legal acima da lei positiva, uma "lei natural" que obriga a consciência?
Rafael Navarro-Valls: Em princípio, a objeção de consciência é um direito fundamental que, inclusive, ampara a chamada consciência errônea. O Estado não é competente para avaliar as motivações que movem as consciências dos seus cidadãos.
Mas é evidente que, em muitos casos, o objetor age movido por uma lei natural que está acima da lei positiva. Isso não é uma anomalia. Quando fez meio século do início daquele drama judicial que foram os julgamentos de Nurembreg, discutiu-se e observou-se que, ao se rejeitar a tese da “obediência devida” à lei nacional-socialista e às autoridades quando ordenam atrocidades, o que se potencializou foi a função ética, que, na teoria clássica da justiça, corresponde à consciência pessoal. Nuremberg demonstrou que a cultura jurídica ocidental se fundamenta em valores jurídicos radicais, por cima de decisões de eventuais maiorias ou imposições plebiscitárias.
- Qual é a sua opinião sobre as decisões europeias no caso concreto da objeção dos profissionais de saúde contra o aborto?
Rafael Navarro-Valls: As resistências detectáveis a reconhecer esse direito em toda a sua plenitude sofreram um revés jurídico severo com a recente resolução 1763 (2010) da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa. Ela estabelece a clara proibição de coagir ou discriminar pessoas ou instituições que se recusem, por qualquer razão, a participar ou colaborar num aborto voluntário, eutanásia ou em qualquer ato que cause a morte de um feto ou embrião humano. Ao mesmo tempo, convida os Estados membros a desenvolverem uma normativa que tutele em sua plenitude a objeção de consciência ao aborto, garantindo aos profissionais de saúde o direito de se absterem em todo tipo de práticas abortivas ou de eutanásia.