Vamos seguir publicando algumas catequeses do Papa Bento XVI sobre teólogos.
Pe. Eduardo Peters
João de Salisbury
Caros irmãos e irmãs
Hoje vamos conhecer a figura de João de Salisbury, que pertencia a uma das escolas filosóficas e teológicas mais importantes da Idade Média, a da Catedral de Chartres, na França. Também ele, como os teólogos de que falei nas semanas passadas, nos ajuda a compreender como a fé, em harmonia com as justas aspirações da razão, impele o pensamento para a verdade revelada, na qual se encontra o verdadeiro bem do homem.
João nasceu em Salisbury, na Inglaterra, entre 1100 e 1120. Lendo as suas obras e sobretudo o seu rico epistolário, tomamos conhecimento dos factos mais importantes da sua vida. Durante cerca de doze anos, de 1136 a 1148, ele dedicou-se aos estudos, frequentando as escolas mais qualificadas da época, nas quais ouviu as lições de mestres famosos. Foi a Paris e depois a Chartres, o ambiente que marcou em maior medida a sua formação e do qual assimilou a grande abertura cultural, o interesse pelos problemas especulativos e o apreço pela literatura. Como muitas vezes acontecia nessa época, os estudantes mais brilhantes eram convidados por prelados e soberanos, para ser seus estreitos colaboradores. Isto aconteceu também com João de Salisbury, que por um seu grande amigo, Bernardo de Claraval, foi apresentado a Teobaldo, Arcebispo de Canterbury – sede primacial da Inglaterra – que de bom grado o acolheu no seu clero. Por onze anos, de 1150 a 1161, João foi secretário e capelão do idoso Arcebispo. Com zelo incansável, enquanto continuava a dedicar-se ao estudo, ele desempenhou uma actividade diplomática intensa, visitando dez vezes a Itália, com a finalidade de manter as relações do Reino e da Igreja da Inglaterra com o Romano Pontífice. Além disso, naqueles anos o Papa era Adriano IV, um inglês que teve uma forte amizade com João de Salisbury. Nos anos seguintes à morte de Adriano IV, ocorrida em 1159, na Inglaterra criou-se uma situação de grave tensão entre a Igreja e o Reino. Com efeito, o rei Henrique ii tencionava afirmar a sua autoridade sobre a vida interna da Igrea, limitando a sua liberdade. Esta tomada de posição suscitou as reacções de João de Salisbury, e principalmente a resistência corajosa do sucessor de Teobaldo na cátedra episcopal de Canterbury, S. Tomás Becket, que por este motivo foi para o exílio, na França. João de Salisbury acompanhou-o e permaneceu ao seu serviço, trabalhando sempre por uma reconciliação. Em 1170, quando quer João quer Tomás Becket já tinham voltado para a Inglaterra, este último foi atacado e assassinado no interior da sua catedral. Morreu como mártir e como tal foi imediatamente venerado pelo povo. João continuou a servir fielmente também o sucessor de Tomás, até ser eleito Bispo de Chartres, onde permaneceu de 1176 a 1180, ano da sua morte.
Das obras de João de Salisbury gostaria de indicar duas, que são consideradas as suas obras-primas, designadas elegantemente com os títulos gregos de Metaloghicón (Em defesa da lógica) e Polycráticus (O homem de Governo). Na primeira obra ele – não sem a requintada ironia que caracterizava muitos homens cultos – rejeitou a posição daqueles que tinham uma concepção redutiva da cultura, considerada como eloquência vazia, palavras inúteis. João, por sua vez, elogia a cultura, a filosofia autêntica, ou seja o encontro entre pensamento forte e comunicação, palavra eficaz. Ele escreve: "De facto, como não é só temerária, mas também eloquência cega não iluminada pela razão, assim a sabedoria que não beneficia do uso da palavra é não só frágil, mas de certo modo incompleta: com efeito, embora por vezes uma sabedoria sem palavra possa ser benéfica no confronto da própria consciência, raramente e pouco beneficia a sociedade" (Metaloghicón 1, I, PL 199, 327). Um ensinamento muito actual. Hoje, aquela que João definia "eloquência", ou seja a possibilidade de comunicar com instrumentos cada vez mais elaborados e difundidos, multiplicou-se enormemente. Todavia, é ainda mais urgente a necessidade de transmitir mensagens dotadas de "sabedoria", ou seja inspiradas na verdade, na bondade e na beleza. Trata-se de uma grande responsabilidade, que interpela em particular as pessoas que trabalham no âmbito multiforme e complexo da cultura, da comunicação, dos mass media. E este é um âmbito em que se pode anunciar o Evangelho com vigor missionário.
No Metaloghicón, João enfrenta os problemas da lógica, na sua época objecto de grande interesse, e formula-se uma interrogação fundamental: o que pode conhecer a razão humana? Até que ponto ela pode corresponder àquela aspiração que existe em cada homem, ou seja a busca da verdade? João de Salisbury adopta uma posição moderada, baseada no ensinamento de alguns tratados de Aristóteles e de Cícero. Na sua opinião, em geral a razão humana alcança conhecimentos que não são inquestionáveis, mas prováveis e opináveis. O conhecimento humano – esta é a sua conclusão – é imperfeito, porque está sujeito à finitude, ao limite do homem. Porém, ela cresce e aperfeiçoa-se graças à experiência e à elaboração de raciocínios correctos e coerentes, capazes de estabelecer relações entre os conceitos e a realidade, graças ao debate, ao confronto e ao saber que se enriquece de geração em geração. Somente em Deus existe uma ciência perfeita, que é comunicada ao homem, pelo menos parcialmente, por meio da Revelação acolhida na fé, pelo que a ciência da fé, a teologia, alarga as potencialidades da razão e faz progredir com humildade no conhecimento dos mistérios de Deus.
O crente e o teólogo, que aprofundam o tesouro da fé, abrem-se também a um saber prático, que guia as acções quotidianas, ou seja, para as leis morais e o exercício das virtudes. João de Salisbury escreve: "A clemência de Deus concedeu-nos a sua lei, que estabelece as coisas que nos é útil conhecer, e que indica quanto é lícito saber de Deus e quanto é justo indagar... Com efeito, nesta lei explicita-se e torna-se evidente a vontade de Deus, a fim de que cada um de nós saiba o que para ele é necessário fazer" (Metaloghicón 4, 41, PL 199, 944-945). Segundo João de Salisbury, existe também uma verdade objectiva e imutável, cuja origem está em Deus, acessível à razão humana e que diz respeito ao agir prático e social. Trata-se de um direito natural, no qual as leis humanas e as autoridades políticas e religiosas devem inspirar-se, a fim de poder promover o bem comum. Esta lei natural é caracterizada por uma propriedade à qual João chama "equidade", ou seja a atribuição dos seus direitos a cada pessoa. Dela derivam preceitos que são legítimos em todos os povos, e que em qualquer caso não podem ser ab-rogados. Esta é a lei central do Polycráticus, o tratado de filosofia e de teologia política, em que João de Salisbury, reflecte sobre as condições que tornam a acção dos governantes justa e permitida.
Enquanto outros argumentos enfrentados nesta obra estão ligados às circunstâncias históricas em que ela foi composta, o tema da relação entre lei natural e ordenamento jurídico-positivo, mediado pela equidade, é ainda hoje de grande importância. Com efeito, no nosso tempo, sobretudo em alguns países, assistimos a uma separação preocupante entre a razão, que tem a tarefa de descobrir os valores éticos ligados à dignidade da pessoa humana, e a liberdade, que tem a responsabilidade de os acolher e promover. Talvez João de Salisbury nos recorde hoje que são conformes com a realidade somente as leis que tutelam a sacralidade da vida humana e rejeitam a liceidade do aborto, da eutanásia e das experiências genéticas desenvoltas, aquelas leis que respeitam a dignidade do matrimónio entre um homem e uma mulher, que se inspiram numa laicidade correcta do Estado – laicidade que contudo comporta sempre a salvaguarda da liberdade religiosa – e que perseguem a subsidiaridade e a solidariedade nos planos nacional e internacional. Caso contrário, acabaria por se instaurar aquela que João de Salisbury define a "tirania do príncipe" ou, nós diríamos, "a ditadura do relativismo": um relativismo que, como eu recordava há alguns anos, "nada reconhece como definitivo e deixa como última medida só o próprio eu e os seus desejos" (Missa pro eligendo Romano Pontifice, Homilia, ed. port. de "L'Osservatore Romano" de 23 de Abril de 2005).
Na minha Encíclica mais recente, Caritas in veritate, dirigindo-me aos homens de boa vontade, que se comprometem a fim de que a acção social e política nunca seja separada da verdade objectiva sobre o homem e sobre a sua dignidade, escrevi: "A verdade e o amor que a mesma desvenda não se podem produzir, mas apenas acolher. A sua fonte última não é – nem pode ser – o homem, mas Deus, ou seja, Aquele que é Verdade e Amor. Este princípio é muito importante para a sociedade e para o desenvolvimento, enquanto nem uma nem outro podem ser apenas produtos humanos; a própria vocação ao desenvolvimento das pessoas e dos povos não se funda sobre a simples deliberação humana, mas está inscrita num plano que nos precede e constitui para todos nós um dever que há-de ser livremente assumido" (n. 52). Temos que procurar e acolher este plano que nos precede, esta verdade do ser, para que nasça a justiça, mas só podemos encontrá-lo e acolhê-lo com um coração, uma vontade, uma razão purificados na luz de Deus.