Toda uma política pública abortista foi construída no Brasil em cima do avanço daqueles que já falam de direito ao aborto por cima de todo um ordenamento legal que diz exatamente o contrário.
Brasília, 12 de Junho de 2014 (Zenit.org) Paulo Vasconcelos Jacobina
Toda a nocividade da lei n. 12.845/2013 veio à tona pelo advento da portaria SUS n.º 415/2014 – cujo efeito seria a pura e simples generalização indevida do aborto no sistema público de saúde brasileiro, e que foi revogada sem que seu conteúdo fosse em nenhum momento repudiado pelo governo. Toda uma política pública foi construída no Brasil em cima do avanço daqueles que já falam de “direito ao aborto” por cima de todo um ordenamento legal que diz exatamente o contrário, e o fazem não somente sem sofrer contestação, como ainda avançando a cada momento na busca da consolidação normativa do direito a aumentar as hipóteses em que consideram justo matar os bebês durante a gestação.
Há várias hipóteses em que o código penal isenta condutas ilícitas de apenamento. É o caso do art. 121, § 5º, que autoriza o juiz, na hipótese de homicídio culposo, a deixar de aplicar a pena, se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária. No entanto, jamais alguém defendeu, em nosso país, que havia um direito a praticar homicídios culposos quando o agente também se machucasse. O art. 181 do CP isenta de pena quem pratica crimes contra o patrimônio contra cônjuge, ascendente ou descendente, mas ninguém jamais defendeu um direito a sequestrar e extorquir os próprios pais e avós. Esta leitura “geradora de direito ao crime”, portanto, é bem seletiva – só tem se aplicado ao art. 128 do código penal, que isenta de pena algumas modalidades de aborto sem descriminalizá-lo em nenhuma hipótese.
O reexame da lei n.º 12.845/2013 mostra que na verdade, seu texto quase todo apenas repete leis anteriores e até fragiliza a proteção dos cidadãos vítimas de violência sexual com relação à legislação que a precedeu. Salvo nos artigos 2º e 3, IV, em que a lei cria conceitos esdrúxulos que têm como única função alargar as ambiguidades que permitem realizar legalmente abortos em nosso país.
O artigo 1º desta lei, por exemplo, visa garantir que o SUS ofereça atenção à vítima de violência sexual, seja qual for o seu sexo, condição ou idade. Esta obrigação já existia na nossa Constituição, art. 198, e já estava perfeitamente regulamentada pela lei n.º 8.080/90, art. 7º e respectivos incisos, que já tratava de universalidade de acesso aos serviços de saúde, integralidade de assistência, preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral e igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie.
Quando as vítimas de violência sexual fossem crianças e adolescentes, ou idosos, havia estatutos ainda mais protetivos que a lei n.º 8.080/90 e a própria lei cavalo de Troia. Diz o Estatuto da Criança e Adolescente (lei n.º 8.069/90) que estes já tinham total prioridade no serviço público de saúde, coisa que a atual lei n.º 12.845 não assegura. O ECA nos ensina, no seu art. 4º, que a garantia de prioridade para crianças e adolescentes compreende a primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias e a precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública.
Também os idosos vítimas de violência sexual estavam bem mais protegidos pelo texto original do Estatuto do Idoso (lei n.º 10.741/2003), que no seu art. 3º já lhes garantia prioridade nestas hipóteses, para “atendimento preferencial imediato e individualizado junto aos órgãos públicos e privados prestadores de serviços à população”.
As mulheres que não se enquadrassem nem no ECA, nem no Estatuto do Idoso, já tinham prioridade e especificidade de atendimento contra este tipo de violência na Lei n.º 11.340/2006, chamada de “Lei Maria da Penha”, em especial no seu art. 9º. Os homens adultos vítimas da violência sexual, a universalidade de acesso e a preservação da integridade já estavam perfeitamente definidos na lei n.º 8.080/90, como vimos acima.
O art. 2º da lei cavalo de troia também desprotege as vítimas, se for aplicado na sua literalidade. Já havia um conceito de violência sexual mais amplo no nosso direito, veiculado no art. 213 do código penal, aliás de redação recentíssima, de 2009. O art. 2º da lei cavalo de troia apenas serve para veicular “ideologia de gênero”, a velha ideia de que “meu corpo me pertence” e que a vida e a integridade física de alguém são bens por ela disponíveis, como se o fato de consentir na violência fizesse com que a violência deixasse de ser violência. Nosso direito anterior nunca condicionou o reconhecimento da violência sexual à existência de consentimento ou não pela vítima.
A vida e a integridade física sempre foram considerados bens indisponíveis, antes da “lei cavalo de troia”. Mesmo que alguém consinta com a violência, isto não a torna menos violenta, nem exclui a vítima do acesso ao atendimento médico, como este artigo 2º agora faz, e a legislação anterior não fazia. Pode-se facilmente pensar em atos sexuais consentidos e violentos, e cujo consentimento não pode nem deve ser obstáculo para a utilização plena do SUS em favor da eventual vítima, como a lei cavalo de troia diz. Por outro lado, pode-se citar uma quantidade grande de atos sexuais não consentidos – como a apalpação forçada da genitália do agressor - que não geram nenhuma necessidade de atendimento da vítima pelo sistema público de saúde.
O código penal já previa o crime de omissão de socorro, punindo quem deixasse de socorrer quaisquer pessoas necessitadas de atendimento, mesmo no caso em que a vítima, que necessitasse do socorro, tivesse consentido com a violência. Está no art. 135 do CP.
O art. 3º da lei cavalo de troia, que especifica como deve ser feito este atendimento, também é, na prática, desnecessário e menos protetivo, mesmo onde não é abertamente nocivo. Os incisos I, II, V e VI são meras repetições de protocolos médicos que podem ser ultrapassados por novas pesquisas científicas, e os eventuais diretos que aponta já eram contemplados pela lei n.º 8.080/90, art. 7º. Inclusive o direito à informação, às pessoas assistidas, sobre sua saúde – redação do inciso V deste art. 7º da lei n.º 8.080/90.
Quanto à coleta de provas para fins penais, de que tratam alguns dos incisos deste art. 3º da lei cavalo de troia, já está exaustivamente regulamentada no código de processo penal, em especial art. 6º e art. 158 e seguintes.
O que a lei cavalo de troia traz de novo é simplesmente a ideia de que qualquer gravidez para a qual não haja um consentimento da mulher é, em si mesmo, uma violência sexual contra ela, e pode ser eliminada pelo aborto, numa prática que esta lei sorrateiramente denomina de “profilaxia da gravidez”, como se o bebê fosse uma doença.
Trata-se, portanto, de uma lei destinada apenas a promover a ideologia do gênero e a inserção de conceitos jurídicos que permitem facilitar a liberação do aborto no país. Isto tudo embalado em outros artigos inócuos, mas simpáticos, que têm apenas a função de dar uma embalagem atrativa à ameaça à vida uterina escondida nesta lei – exatamente como os troianos fizeram com os gregos no famoso episódio do cavalo.
Retirado de: http://www.zenit.org/pt/articles/a-lei-cavalo-de-troia-uma-analise-juridica-da-sua-nocividade