ROMA, segunda-feira, 11 de outubro de 2010 (ZENIT.org) - Se na ideologia da teoria do gênero é dito que cada um constrói e inventa suas normas, o que diz a Caritas in Veritate a respeito? Trata-se de um tema que monsenhor Anatrella discutiu em julho, numa palestra aos bispos do continente africano.
Tony Anatrella é psicanalista e especialista em psiquiatria social. Consultor do Conselho Pontifício para a Família e do Conselho Pontifício para a Pastoral no Campo da Saúde, é também membro da Comissão Internacional de Investigação sobre Medjugorje da Congregação para a Doutrina da Fé. Ele leciona em Paris, no IPC e no Collège des Bernardins.
ZENIT: Se na ideologia da teoria do gênero é dito que cada um constrói e inventa suas normas, o que a Caritas in Veritate diz a respeito?
Monsenhor Tony Anatrella: Estamos em plena ilusão narcisista de acreditar que o homem cria a si mesmo e é sua própria referência. É o pecado do espírito por excelência, o pecado original ainda em ação.
NaCaritas in Veritate, o Santo Padre questiona, segundo suas palavras, sobre a ideologia tecnocrática que cria sistemas de compreensão do homem e de organização da sociedade pouco realistas e contrários tanto às necessidades humanas como ao bem comum.
É por isso que o Papa, em sua encíclica, se resguarda contra "a utopia duma humanidade reconduzida ao estado originário da natureza", que é uma forma de "separar o progresso da sua apreciação moral e, consequentemente, da nossa responsabilidade" (n. 14). Por trás desta noção de "uma humanidade reconduzida ao estado originário" se revela o desejo de desconstruir as relações econômicas em nome da sociedade de mercado, mas também os conceitos de homem e mulher, casais, matrimônio, família e criação dos filhos. A verdade do homem se encontraria assim então na indiferenciação para serem iguais, na liberação de todos os modelos e de todas as representações, elaborados pelo processo da civilização, concebidos como super-estruturas que frustram os desejos primários e as exigências circunstanciais.
Neste sentido, o Papa disse, o homem já não se concebe como um dom oferecido a si mesmo com uma ontologia que lhe é própria, mas como um ser que se cria e se forma sozinho. Odesenvolvimento humano, longe de ser uma vocação que vem de um chamado transcendental, e que portanto tem um significado, frequentemente se apresenta por meio da ideia de que o homem deve dar sentido a si mesmo. Contudo, destaca Bento XVI, "é incapaz por si mesmo de atribuir-se o próprio significado último" (n. 16). Voltando à Populorum Progressio, diz: "não há, portanto, verdadeiro humanismo senão o aberto ao Absoluto, reconhecendo uma vocação que exprime a ideia exacta do que é a vida humana". Do contrário, o homem pensará somente olhando a si próprio, sem outro tipo de relação que não seu próprio narcisismo e vaidade, uma visão que caracteriza o espírito pagão das sociedades ocidentais, impregnadas de noções egoístas. Os construtores de ilusões, nas palavras de João Paulo II (n. 17), " fundam sempre as próprias propostas na negação da dimensão transcendente do desenvolvimento, seguros de o terem inteiramente à sua disposição. Esta falsa segurança converte-se em fraqueza, porque implica a sujeição do homem, reduzido à categoria de meio para o desenvolvimento, enquanto a humildade de quem acolhe uma vocação se transforma em verdadeira autonomia, porque torna a pessoa livre" (n. 17). Em outras palavras, se o sujeito humano desenvolve uma personalidade particular, no sentido psicológico do termo, já não é seu ser que serve de base para seu desenvolvimento pessoal e social. O homem se faz livre, independente e vigoroso quando reconhece a origem de seu ser. Nesta perspectiva, a fé cristã é uma liberação porque Cristo revela sua verdade no alfa e omega. Uma "verdade que liberta" (Jo 8, 36-38), e esta verdade permite se inscrever num desenvolvimento constante, que é outra coisa diferente que nos construirmos, disse Bento XVI.
Mas esta verdade está longe de ser aceita como um dom recebido. A verdade é considerada como um produto humano, quando é, no melhor dos casos, o resultado de uma descoberta ou uma recepção (n. 34). É assim que "o amor na verdade põe o homem na surpreendente experiência do dom" (n. 34). O homem cultiva uma má fé para não reconhecer este fato, e se retira até a autosuficiência, até uma verdade conveniente. Ele quer lutar contra o mal com suas próprias forças e em nome das leis democráticas que fabrica. Tenta ignorar o sentido do pecado e do mal que ferem o homem, acreditando erradicá-lo com leis civis que tantas vezes não fazem mais que fortalecê-lo. O homem moderno, diz o Papa, quer que coincida o bem-estar material e social com a saúde ou ainda a felicidade. Na tentativa de salvar a si próprio, não só se perde, mas ainda fica cada vez mais na depressão, por ser incapaz de encontrar a fonte de seu ser.
ZENIT: A ideologia do gênero teria tomado lugar de outras ideologias mortas?
Monsenhor Tony Anatrella: Temos de levar em conta que as organizações internacionais, as Nações Unidas, a Comissão Europeia e o Parlamento de Estrasburgo impõem esta nova ideologia na ignorância dos cidadãos. Temos dado muitas palestras sobre este tema na França e no exterior, e o público fica surpreendido ao constatar que estas ideias são filtradas insidiosamente nas leis civis, nos meios de comunicação, nas séries de televisão, no ensino médio e na Universidade. Os meios de comunicação franceses louvaram, de forma demagógica e sem sentido crítico, a criação de uma Cátedra sobre Gênero, em Ciências Políticas, em Paris, na primavera de 2010, quando esta ideologia contamina a educação e as representações sociais já há anos. Como sempre, a ideologia de "moda" de uma época não pode suportar a crítica, como nos anos 1950-1960 estava na moda nos círculos chamados intelectuais não criticar o marxismo, mas honrá-lo em todas as disciplinas. A maioria dos estudos universitários foi impregnada dele.
A ideologia do gênero agora passa por meio de leis que têm por objetivo criar a realidade social. Este é ocavalo de Troia e é demasiadamente tarde quando se descobre. Os africanos querem ser vigilantes sobre o tema, e sua visão me impressionou durante minha estada na África. Eles podem nos dar lições de realidade e de pensamento.
O ocidente deveria ser mais humilde e modesto em relação aos africanos, do contrário, corremos o risco de minar nossa credibilidade de vê-los estabelecer colaboração com outros países e outros horizontes culturais. As democracias, dado que estão nesta lógica de que estamos na era dos grupos de pressão e dos informes compostos ideologicamente de antemão, em muitos organismos internacionais e europeus, criam leis (tecnocráticas) em nome de simples ajustes técnicos, como o ministro da Justiça disse na França em 1999, de modo que abraçam inicialmente uma concepção da vida e alteram o sentido da realidade. Este é o sentido do que passou com a instituição do matrimônio. O marxismo queria inventar um novo homem, o nazismo, um homem puro, e a teoria de gênero, um homem liberado da diferença sexual: os homens e as mulheres são intercambiáveis em nome do falso valor da paridade sexual, e as orientações sexuais poderiam ser origem do casal e da família. Como não ver que o niilismo e o revisionismo das realidades mais importantes estão trabalhando?
(Anita S. Bourdin)
Fonte: Zenit