Entrevista com monsenhor Tony Anatrella
ROMA, domingo, 10 de outubro de 2010 (ZENIT.org) - A teoria do gênero, dominante em muitas instâncias culturais e sociais no Ocidente, que afirma que a identidade sexual do indivíduo é uma construção social e não uma realidade natural, foi um dos temas centrais da 15ª Assembleia Geral do SCEAM (Simpósio das Conferências Episcopais da África e Madagascar) em Accra, Gana.
Sobre esta questão e sobre os ensinamentos a respeito da verdade sobre o ser humano contidos na encíclicaCaritas in Veritate, falou aos bispos do continente africano monsenhor Tony Anatrella.
Monsenhor Anatrella é psicanalista e especialista em psiquiatria social. Consultor do Conselho Pontifício para a Família e do Conselho Pontifício para a Pastoral no Campo da Saúde, é também membro da Comissão Internacional de Investigação sobre Medjugorje, da Congregação para a Doutrina da Fé, e leciona em Paris, no IPC e no Collège des Bernardins.
Ele foi convidado a dar uma palestra sobre o tema: "ACaritas in Veritate e a teoria do gênero" aos bispos africanos reunidos em Accra para a plenária do SCEAM, celebrada dia 26 de julho até 2 de agosto de 2010.
Sobre este tema Anatrella concedeu esta entrevista a ZENIT, que será publicada em partes.
ZENIT: A encíclica Caritas in Veritate aborda realmente os problemas levantados pela teoria do gênero?
Monsenhor Tony Anatrella: A questão antropológica é o fio condutor da reflexão da última encíclica do Papa. De fato, além do lado econômico da crise atual, esta é também uma crise moral e espiritual sobre o sentido do homem. ACaritas in veritate tem a intenção de abordar a concepção do homem que se construiu a partir das ciências humanas nos últimos cinquenta anos. O enfoque dessas, sob o disfarce de ciência, apresenta-se como uma ideologia que sugere que o homem é o resultado da cultura e que se constrói com independência da natureza humana e das leis universais inerentes a sua condição. A teoria do gênero é o sinal mais problemático das ideias atuais sobre o homem.
Nos países ocidentais, encontramo-nos precisamente nesta instabilidade antropológica e, por conseguinte, moral que desequilibra os vínculos sociais, já que ataca a estrutura na qual a sociedade se baseia. Isso ocorre por meio da desregulação financeira em nome do liberalismo e da economia de mercado, e da desregulação antropológica e moral, fazendo crer que as normas são criadas unicamente por consenso. Mas não é o debate democrático que dá valor a uma lei, mas aquilo em que ela se fundamenta. Assim acontece com as leis que são questionáveis desde uma perspectiva antropológica. Seu voto não lhes dá necessariamente um valor moral. É dever da Igreja dizer isso.
Assim, instalaram-se um relativismo e um negacionismo dos pontos de referência da antropologia. Como não ver que isso está criando uma nova forma de violência? Esta se expressa começando pelos mais jovens, que têm dificuldades de acesso às dimensões objetivas e simbólicas da relação com os demais e com a sociedade. Cada um se instala no desejo de inventar seus próprios códigos, com a vontade de se impor aos demais. Este é o drama e o sintoma de algumas de nossas cidades. Já que não estamos em busca de normas transcendentes, de princípios de humanidade, no sentido de que já não dependem do sujeito, mas da livre vontade da interpretação aleatória. Uma antropologia com um sentido de desenvolvimento humano, diz Bento XVI, inscreve-se na perspectiva do bem comum que da conta da dimensão política e da dimensão religiosa da existência.
ZENIT: Não se reprova a Igreja por intervir no campo político? A Igreja está verdadeiramente cumprindo sua função?
Monsenhor Tony Anatrela: A Igreja está em seu papel e deve intervir quando a dignidade humana está em jogo. Ao longo da história, os governos às vezes têm dificuldades para aceitar seus discursos e levá-los em conta. Muitos bispos e sacerdotes pagaram com o preço de suas vidas. Há uma incompreensão por parte da opinião pública e, muitas vezes, por parte dos responsáveis políticos, sobre o papel da Igreja, que não deve ser excluída do debate político quando recorda questões para despertar as consciências.
Cristo não fez outra coisa no Evangelho, mas manifestou a verdade de Deus e revelou a do homem. Para alguns a separação entre Igreja e Estado faria que a Igreja não tivesse direitos de intervir nas questões sociais políticas. Trata-se de um erro de perspectiva sobre o significado da laicidade. É o Estado que é laico e não a sociedade.
A Igreja não tem de se esconder na sacristia, como dando a entender a Cristo a ordem de que se cale. Tampouco há que se opor as normas da Igreja às do Estado. Ainda que a Igreja não tenha por objetivo regular a sociedade política, a Igreja pode falar, em nome de seu ensinamento social, que tem influenciado enormemente a cultura ocidental, sobre todos os temas sociais que afetam a existência humana.
A separação da Igreja e Estado é a separação do poder religioso e o poder político (no sentido de governo), e não fazer crer que haveria dois sistemas de pensamento opostos e contraditórios para pensar no bem comum. As normas políticas seriam assim estranhas não só às exigências antropológicas objetivas, mas também para as regras morais. A criação da lei civil, como a prática política, sempre revelam uma concepção do homem que é compatível ou incompatível com os princípios da razão. A lei civil não está acima das referências morais.
ZENIT: O discurso da Igreja não vai contra a razão humana?
Monsenhor Tony Anatrella: Com certeza não. Muitos discursos ideológicos e políticos tentam escapar da evidência da razão humana. Ainda que o cristianismo produza seu próprio raciocínio a partir do Evangelho, não está em contradição com a razão das coisas quando pensa nelas. A relação com Deus, como ensina Cristo, é uma questão de amor, amor à verdade. Amam a verdade? O Sumo Pontífice enfatizou isso em sua encíclica. A Igreja intervém precisamente em nome destes princípios da razão, confrontados pela realidade e iluminados pela revelação cristã.
O Papa Bento XVI destacou maravilhosamente em seu discurso noCollège des Bernardins durante sua viagem apostólica a Paris e Lourdes (12 de setembro de 2008). A fé cristã se apoia na razão para discernir o significado da Palavra de Deus e tirar todas suas consequências. Não é unicamente uma questão religiosa, mas de saber a partir de quais realidades o homem se desenvolve na verdade e justiça. A Igreja pode ser entendida igualmente bem pelos crentes e pelos não crentes. Caritas in veritate é assim quando apela ao sentido de um desenvolvimento integral que não reduz o homem a um objeto econômico, quando apela ao respeito da dignidade humana, à igualdade das pessoas, que não se confunde com o igualitarismo das situações e comportamentos, ao sentido do matrimônio e da família baseados unicamente na relação estável entre um homem e uma mulher, a uma prevenção contra a AIDS que não se limita às medidas sanitárias, ou também que a anti-concepção e o aborto são "avanços" sociais que afetam a vida humana e causam sérios e graves problemas psicológicos, sociais, ecológicos, demográficos e morais, e, finalmente, que a eutanásia nunca é um ato de amor. O amor nunca inspira a morte.
Poderíamos destrinchar também outras situações nas quais a Igreja tenta fazer entender onde há uma tendência a minimizar ou ignorar seu discurso quando não é conveniente ao conformismo dos clichês sociais e dos meios de comunicação. Pelo contrário, o discurso da Igreja se faz credível se justificar as posturas particulares e se for na direção de certos movimentos de opinião. Do contrário, é declarado ilegítimo pelo primeiro escritor ou crítico profissional que se posiciona no magistério contra a Igreja e quer dar aulas ao Papa e aos bispos. Na realidade, tanto uns como outros aproveitam para instrumentalizar seu discurso no lugar de compreendê-lo de forma autêntica.
Em última instância, o que o Papa disse em sua encíclica e que os políticos deveriam ler: as decisões políticas são tomadas frequentemente condicionadas pela sociedade de consumo que impõe suas normas econômicas (com o símbolo moral dos franceses baseado unicamente no poder das aquisições que se realizaram durante um determinado período). A sociedade chamada liberal, de fato, a mais alienante das subjetividades, leva os políticos a se deixarem guiar por uma visão pragmática, a governar a partir dos pontos cegos da sociedade com leis de circunstâncias e sem ter princípios antropológicos precisos. As leis democráticas provêm de leis prescritas pelos meios de comunicação às quais se submetem às vezes aos governantes.
Os meios de comunicação e as pesquisas, com a força das imagens e discursos, se impõem a todos com o imediatismo dos tempos da internet, em detrimento do sentido da história e o tempo de amadurecimento das opções políticas. A história, que é ensinada cada vez menos na escola, dá aos jovens o sentimento de que o tempo não conta, somente domina o instante e o exotismo do que está ocorrendo nos outros lugares. Como refletir e governar seriamente em uma atmosfera de provocação e de "excitação midiática", com os olhos fixos no acontecimento presente e sem nenhum tipo de distância? A Igreja apela para a razão, a dignidade das pessoas e situações, e se inscreve em uma história.
Para alguns, a Igreja será generosa com os estrangeiros e rígida em assuntos morais (sobretudo quando se fala de preservativos, de homossexualidade, de divórcio, de aborto, de eutanásia). A Igreja não é rídiga, mas é livre, lúcida e aberta à vida, como exige Cristo, já que é sempre no nome do mesmo princípio que ela intervém e estrutura sua relação com o mundo: o respeito da dignidade humana, o respeito da expressão sexual como uma forma de relação amorosa comprometida entre um homem e uma mulher, e o respeito da vida a partir de seu início até seu fim. Todas estas coisas estão sendo questionadas, também pela teoria do gênero, já que cada um é seu próprio criador e destruidor, e por que não, o destruidor e exterminador de vidas que não são úteis! Uma ideologia tecnocrática e idealista e ao mesmo tempo tão danificadora como suas precedentes!
(Anita S. Bourdin)
Fonte: Zenit