Por Paulo Jacobina*
Há motivos bastante sensatos para ter cuidado com esse enquadramento dos “direitos sexuais”, como a “orientação sexual” ou a “identidade de gênero”, na categoria dos direitos humanos.
O Procurador Geral da República expediu parecer no Mandado de Injunção n.º 4733, que tramita no Supremo Tribunal Federal, opinando no sentido de reconhecer que a “orientação sexual” e a “identidade de gênero” constituem categorias similares à raça, cor, sexo, etnia e idade, para fins de proteção constitucional, e que, portanto, quaisquer discriminações baseadas em “orientação sexual” e a “identidade de gênero” ferem a Constituição. O parecer diz mais, que as pessoas que cometerem tais discriminações poderão ser punidas com base na lei de racismo, que será aplicada, neste caso, por analogia, dada a demora do Congresso Nacional em aprovar o PL 122/2006. O PGR entende que esta demora fere direitos humanos, o que faz presumir que ele entende que qualquer resultado legislativo diferente da total aprovação deste PL 122 representaria um atentado, por parte do Legislativo, aos direitos humanos tais como previstos na Constituição Federal como direitos fundamentais dos cidadãos.
Este mandado de Injunção foi proposto pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) e, entre outras coisas, visa suprir o que a autora entende como uma “omissão do poder legislativo” em regulamentar a proteção à “identidade de gênero” e à “orientação sexual”, o que estaria lesando direitos fundamentais desta categoria, e compelir o legislativo a decidir em perfeita conformidade com os interesses desse grupo, que, conforme entendem, seria a única forma de garantir direitos humanos fundamentais que eles entendem estar implícitos na Constituição Federal.
Assim, para esse grupo, agora apoiados pelo parecer do PGR a seu favor, a não aprovação do PL 122 não decorreu do fato de que esta proposta tem sérios problemas de razoabilidade e consequências que vão muito além da pretensa proteção da minoria, o que determina a necessidade de toda a cautela, no Legislativo, para a sua apreciação. Para os autores da ação, o simples fato de que o PL 122 até agora não foi aprovado da maneira exata como eles querem fere seus “direitos” humanos e fundamentais. Assim, o Legislativo, para eles, estaria lesando seus direitos pelo simples fato de se recusar a aprovar rapidamente aquilo que eles querem, como eles querem.
Como se não bastasse, o parecer do PGR, ao recomendar a aplicação analógica de uma legislação penal, que versa estritamente sobre racismo, para criminalizar supostas condutas “homofóbicas”, desconsidera diretamente o inciso XXXIX do art. 5º da Constituição Federal, que determina expressamente que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Seria impossível descrever todas as consequências nefastas da adoção desta possibilidade pelo Estado brasileiro aqui, mas para os não versados em assuntos jurídicos basta dizer que este princípio, que veda a previsão de crime por mera analogia, somente foi desatendido nos regimes mais antidemocráticos de que se tem notícia, como o regime nazista, o regime fascista e os regimes marxistas em geral – em todos eles havia a possibilidade de criminalizar por analogia. Mas em nenhuma democracia esta possibilidade jamais foi admitida.
Por outro lado, há motivos bastante sensatos para ter cuidado com esse enquadramento dos “direitos sexuais”, como a “orientação sexual” ou a “identidade de gênero”, na categoria dos direitos humanos. Exatamente por não fazer essa equiparação é que a Corte Europeia de Direitos Humanos, em decisão de 16.07.2014, declarou que o fato de que a Finlândia não equipara as uniões civis homoafetivas aos matrimônios propriamente ditos não representa discriminação injusta, e portanto “não há nenhuma violação do artigo 14º (proibição de discriminação) combinado com o art. 8º (direito de respeito à vida privada e familiar) e art. 12º (direito de casar) da Convenção Europeia de Direitos Humanos”. Decisão disponível em http://hudoc.echr.coe.int/sites/fra-press/pages/search.aspx?i=003-4821870-5880860#{%22itemid%22:[%22003-4821870-5880860%22]}. A Corte europeia de Direitos Humanos tem decidido reiteradamente que tratar diferente as uniões homossexuais frente ao verdadeiro matrimônio não constitui nenhuma lesão a direitos humanos.
A tipificação por analogia da homofobia em nosso país traz consequências sérias, no plano dos debates racionais e da própria possibilidade de educação familiar, de políticas sanitárias e de discussão científica. É por isso que o PL 122 está parado no legislativo, porque nossos legisladores sabem que sua aprovação, na forma que ele tem atualmente, é muito prejudicial à população, inclusive à própria camada que o pleiteia – e que também usufrui do bem comum representado pela família unida e fértil.
Para entender melhor, tome-se uma analogia: imagine-se um palito de fósforo. Para explicá-lo, segundo Aristóteles, é necessário conhecer sua matéria (madeira e compostos químicos inflamáveis na ponta), sua forma (um pequeno palito com uma ponta arredondada inflamável ao atrito), sua eficiência (friccionado numa lixa, ele se inflama) e seu fim essencial, ou utilidade (acender fogões, churrasqueiras, velas ou qualquer outro uso para o fogo).
Sabemos, no entanto, que algumas pessoas gostam de usar o palito de fósforo para coçar o ouvido, até mesmo suas partes internas. É um uso inadequado. Para isso existem as hastes flexíveis com pontas de algodão, e é perfeitamente racional que os pais, educadores e profissionais da saúde possam alertar à população sobre a inconveniência e mesmo os riscos do uso do palito de fósforo para aquilo que somente com hastes de algodão, e mesmo assim sob cuidados estritos, deve ser feito. O uso do palito de fósforo para algo que não é o seu fim pode causar rompimento de tímpano, infecções auriculares e mesmo incêndios, se uma criança inadvertidamente friccionar o palito em alguma superfície áspera no ato de tirá-lo para coçar o ouvido.
Agora imaginemos que o governo subitamente comece a promover campanhas do tipo “você tem o direito de coçar seus ouvidos com o que bem quiser”, e comece a ameaçar pais, educadores, líderes religiosos e profissionais da saúde com a criminalização de suas orientações em contrário, a pretexto de que a “Associação dos Coçadores de Ouvido com Palitos” sente-se discriminada pelos que fazem diferença entre cotonetes e palitos de fósforo, já que coçar os ouvidos com cotonetes não lhes proporciona o mesmo prazer que fazê-lo com o palito. Mesmo diante de evidências apontadas por órgãos internacionais de saúde, de que a falta de capacidade de discernir entre palitos e cotonetes está causando um aumento, neste país, de doenças que são perfeitamente controladas, e até estão se reduzindo, em outros países.
Apesar do apelo racional à cientificidade da descrição acima, com a qual se pode razoavelmente concordar ou discordar, os “palitófilos”, no nosso caso imaginário, simplesmente recusam-se a conversar por meio da argumentação: usam seu poder de organização, sua influência na imprensa, no governo e no sistema acadêmico para rotular seus “opositores” de “palitófobos” e ameaçá-los com a cadeia.
Os órgãos sexuais humanos também podem ser descritos aristotelicamente com menção aos quatro aspectos acima citados – matéria, forma, eficiência e fim. Promover a criminalização, por analogia, de quem se recusa a distorcer a eficiência e o fim da atividade sexual humana, distinguindo racionalmente, por exemplo, da eficiência e do fim dos órgãos do trato digestivo, reduzindo tudo a uma abstrata questão de “direitos humanos” e “afeto”, e ameaçando, ademais, os que racionalmente insistem em ver diferença naquilo que é diferente. Tudo culmina, agora, na utilização do Poder Judiciário para desqualificar a discussão democrática no Legislativo, o que não parece ser um bom caminho. Para dizer o mínimo.
*Paulo Jacobina é Procurador Regional da República
Terça, 05 Agosto 2014 00:00
A tentativa de criação do crime de homofobia no Brasil através do Judiciário
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